quinta-feira, 10 de novembro de 2011

O Dilema

Caminhava distraidamente pela rua, lamentando o seu triste destino quando, sem avisar, o passado lhe apareceu à frente.
***
Eram dez da manhã do dia anterior quando percebeu a verdade: a vida é feita de ciclos. E agora, em frente àqueles estranhos já tão familiares, conseguia adivinhar o recomeço de um. A honestidade obrigou-a a partilhar os seus pensamentos com os demais, e ela teve de fazer um esforço por não revelar demasiado sobre o ciclo que tinha conseguido encerrar recentemente.
Após um ano, estava certa de que muita coisa havia mudado, que agora era uma muher, dona e senhora de si e tinha a fantasia de que podia fazer o que bem entendesse.
Horas mais tarde desenganou-se, quando, ao chegar a casa, percebeu que o facto de se julgar uma mulher, pouco importava para aqueles que viviam com ela. Não tentou argumentar nem sequer explicar-se; não valia a pena, não valia o gasto de energia que não tinha. Preferiu mostrar desagrado e revoltar-se interiormente, qual adolescente frustrado por não ser compreendido. Revoltou-se ainda mais quando se apercebeu do papel que estava a desempenhar, rogando pragas enquanto soluçava e se enrolava nos cobertores. Afinal a mulher tinha-se transformado numa menina, e dona de si era pouco.
***
Naquela tarde, no regresso a casa debatia-se com o seu orgulho. Tinha passado o dia a tentar pereceber o que levaria alguém a ser tão intransigente e a não se dar sequer ao trabalho de ouvir o outro. Várias vezes perguntou a Deus porque é que a sua vida nunca fôra normal e nunca podia ser como tantos da idade dela, adultos. Detestava que lhe passassem atestados de infantilidade, estupidez ou irresponsabilidade. E no dia anterior tinham-lhe passado todos com uma só frase.
O comboio estava cheio mas não conseguiu controlar a lágrima que tinha espreitado durante todo o dia. Queria muito ir, queria que finalmente, não só ela, mas todos os outros a reconhecessem como adulta e lhe cofiassem o seu próprio destino. Lembrou-se do dia anterior, quando numa leitura de tarô quase a sério lhe tinham dito que passaria muito do seu tempo a sonhar e vez de fazer algo. Parecia que estava condenada a ser uma mera expectadora, a nunca ter um papel activo e decisivo na sua vida. Há quase um ano que se esforçava incessantemente por se reerguer e evoluir, mas continuamente era impedida de o fazer.
Saiu do comboio, passou as cancelas e caminhou um quarteirão, quase que levada por uma inércia. Não estava consciente das suas acções. Absorta nos seus pensamentos, passou a passadeira, sempre com a cara no chão, dispensando à tarefa o mínimo de atenção necessário para que não lhe acotecesse nada.
Mas aconteceu.
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Após passar a passadeira, levantou a cabeça. E foi então que o ciclo se bifurcou.
Lá estava ele. Quase que já não se lembrava da sua cara e ficou surpresa ao reparar como era bonito. Ficou a olhá-lo, ali parada, a escassos metros dele. Não se importou com o mundo para lá daquele cenário que se passava à frente dos seus olhos.
Falava com uma senhora, velha e mais baixa que ele. Tinha a mão sore o ombro dela e sorria-lhe, uma simpatia que lhe era estranha. Nunca o tinha visto assim; ele tinha crescido.
Finalmente, quando pensou que ele a tinha visto, iniciou a marcha, com a confiança forjada com que sempre passara por ele, um sorriso quase trocista fez os seus lábios dançar. No espaço de tempo que decorreu entre aqueles passos, debateu-se num conflito interior. Desejava mais que tudo falar com ele mas quando quase estendeu um braço para lhe tocar, percebeu que já não tinha esse direito. Perdera-o há muito, quando deixara de lhe falar, e agora eram meros conhecidos que se cruzavam na rua. Quando passou por ele, milésimos de segundo depois, teve de se desviar para não esbarrar com ele.
Seguiu em frente, os seus passos cada vez mais lentos, fazendo um esforço para reprimir o desejo de se voltar para trás. Pensou senti-lo atrás de si quando ouviu tossir e desejou intensamente que ele a tivesse reconhecido e que partilhasse da mesma vontade que ela.
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***
Se o fez, ela não soube, porque quando achou seguro voltar-se para trás, ao procurá-lo percebeu que se dirigia noutra direcção.
Obrigou-se a desistir da ideia de correr atrás dele, à medida que dobrava a esquina do supermercado. Subiu umas escadas e tocou à campainha, com as pernas ainda a tremer e o coração abalado. Quando lhe abriram a porta e ela entrou no hall para esperar pelo elevador, as lágrias caíram-lhe da cara, e ela desejou nunca o ter largado.

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