Ia com uns amigos assistir a uma comédia. A noite era votada ao riso, à leveza de espírito. Sabia que se ia divertir. Quando finalmente chegou à porta do teatro, encontrou-se com os amigos. Cumprimentou-os e entraram.
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O seu álbum de fotografias mental tinha muitas entradas. Eram momentos da sua vida que tinha registado. O seu olhar, como se fosse uma câmera, o seu cérebro o rolo fotográfico. A cozinha nova da casa em construção era uma das entradas mais antigas. Remontava ao seus dois, três anos de idade. Com a fotografia, estavam "anotados" o sentimento de entusiasmo por uma coisa nova e um quase-orgulho por ela ser tão bonita. Passando umas páginas à frente, encontrava outra fotografia: a imagem de um raio eléctrico a passar-lhe mesmo à frente, durante uma trovoada que aconteceu estava ela na escola primária. Nunca vira uma coisa assim. Na verdade, até à data não tinha a certeza de que tivesse sido real. Avançando no tempo até à sua adolescência, as fotografias com o primeiro amor abundavam. Havia uma especial, que conseguia visualizar perfeitamente se o desejasse e fechasse os olhos: era uma fotografia do rosto dele visto de frente, mas apenas da secção que abrangia os olhos e o nariz. Ao lado, tinha anotado o quanto gostava dele, a perfeição do seu nariz triangular e dos seus olhos cor de avelã, as sobrancelhas aloiradas e o quão bom era quando, estando os dois deitados na relva a apanhar sol, desenhava o perfil dele com um dedo, passando-o gentil e calmamente pelos seus traços.
Estes momentos apareciam-lhe assim, salteados. Sempre que a vida lhe fazia magia ou às vezes em momentos banais. Eram aqueles segundos da nossa vida em que tudo pára e captamos tudo o que nos envolve, dando tempo para que o rolo fotográfico seja exposto à luz o tempo suficiente para captar a imagem perfeita.
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O espectáculo proporcionou-lhes boas gargalhadas. No decorrer da noite que passaram juntos, não pôde deixar de observar os amigos enquanto estes se riam. Os sorrisos, o som das gargalhadas, as rugas em volta dos olhos... tudo isto a deliciava. Percebia que era de momentos destes que o seu álbum e, de uma maneira geral, a Vida eram feitos.
Quando o espectáculo acabou, saíram da sala e desceram as grandes escadas laterais do hall de entrada do edifício ainda a rir-se das partes mais engraçadas da peça. Saíram para a rua e fizeram as contas respeitantes ao bilhetes. Quando saldou a sua dívida ao amigo que os tinha comprado, alheou-se do grupo com o intuito de se deixar absorver pelo espírito da noite que a envolvia. Afastou-se uns passos e virou-se para a rua e as pessoas que passavam, as costas paralelas ao edifício de fachada branca.
Olhava em volta, procurava algo de especial...
Foi quando olhou sobre o seu ombro direito que encontrou exactamente aquilo que andava à procura. O tempo parou e a magia voltou a acontecer: a mais recente entrada no seu álbum de fotografias.
Ali estava ele, perfilado consigo, de pose descontraída e mãos nos bolsos. A luz de um candeeiro de rua situado mesmo por cima da sua cabeça banhava-o, criando jogos de luz e sombras que lhe exaltavam a figura, mas ao mesmo tempo deixavam passar o seu íntimo humilde. As roupas meio largas que ela desdenhava nos outros rapazes, nele assentavam perfeitamente. Davam-lhe um ar simultaneamente composto e confortável. O gorro na cabeça ocultava parte do cabelo, deixando à vista apenas uma madeixa loira à frente. Perfeito.
Mas, ao rever a fotografia vezes sem conta, ela apercebeu-se de que nada disto era o que a tornava tão especial. O melhor de tudo, mesmo? Ele estava a olhar directamente para a câmera.
Dera-se o encontro.
Dera-se o encontro.